Por Padre Gegê, pároco na Paróquia Santa Bernadete, militante da CCIR, psicólogo e mestre em teologia (PUC-RIO) e Doutor em Ciência da Religião (PUC-SP)
Nas emblemáticas palavras do mitólogo Joseph Campbell, “uma imagem vale mais que mil palavras”. Eis porque, como sacerdote católico, pesquisador e militante no diálogo entre o cristianismo e as religiões de matrizes africanas, início este breve artigo chamando a atenção para a foto em tela: o encontro histórico do Babalawô Ivanir dos Santos e o Papa Francisco – duas altíssimas autoridades religiosas, em campos distintos na vivência do sagrado ( sem renunciar suas identidades ), em diálogo fraterno em vista do bem comum e da paz. Considero, pois, a imagem exibida na foto como reveladora, da parte do Babalawô, da afirmação do protagonismo das comunidades de terreiros buscando diálogo com a diversidade religiosa do Brasil.
Por incrível que possa parecer, é no coração dos segmentos religiosos historicamente perseguidos, atacadas e demonizados, inclusive pela Igreja católica, que nasce a proposta inter-religiosa mais exigente e desafiadora: fazer da liberdade religiosa um um caminho a ser percorrido com a diversidade de nossos pés e de nossas fés (“Caminhando a gente se entende”). Ao assumir e propor a luta pela Liberdade Religiosa como Caminhada, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de janeiro (CCIR), tira a sublime bandeira da paz entre povos e religiões dos Documentos e encontros de peritos e a coloca no chão da vida – na rua – onde fés e pés se entrelaçam.
Na obra “Marchar não é caminhar”, livro lançado pela editora Pallas, escreve com propriedade o professor e Babalawô Ivanir dos Santos: “Contrapondo-se às organizações religiosas que tentam promover um diálogo vertical e dominador, em que sempre há um vencido e um vencedor, a CCIR horizontaliza os diálogos e propõe ações diretas sobre os caminhos a serem percorridos até que todas as religiões, no Brasil, possam ser praticadas livremente, sem o peso do Estado ou das hegemonias cristãs pentecostais e neopentecostais “.
Da parte do Papa Francisco, a foto em tela reverbera, no horizonte do Concílio Vaticano II, o coração aberto do Papa ansioso por encontro, diálogo, fraternidade e paz. Nas palavras do Papa, “não há paz sem liberdade religiosa”. É nessa paixão pelos outros (próximos e distantes) que Francisco situa a noção de “Igreja em saída”. Só uma “Igreja em saída” pode assumir o compromisso de caminhar. E diz Francisco na Exortação Apostólica Evangelii gaudium provocando ousadamente os pés dos cristãos e cristãs: “…prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”.
Vale lembrar que os primeiros cristãos e cristãs eram chamados “aqueles e aquelas do caminho”. A fé está mais em nossos pés que em nossas cabeças, escritórios, sacristias ou bibliotecas. Escreve o Papa na Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social (Fratelli Tutti): ” “Queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai de suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para construir pontes, abater muros, semear reconciliação”.
Não é exatamente isso que revela a foto acima? Por isso, mais que uma simples foto ou imagem, da parte de Francisco, digo sem evasiva, estamos diante de uma mensagem, de um programa de vida possível, de um projeto de Igreja numa sociedade afirmativamente plural. O papado de Francisco depõe contra um tipo de Igreja arrogante, fechada em si mesma e dona da verdade. Esse tipo de Igreja não caminha. O poder, antes de matar o coração, aprisiona os pés.
Só caminhando, pelas vias abertas pelo Espírito, a Igreja poderá romper com seu passado/presente colonizador, escravista e imperial. Não é a caminhada anual em defesa da Liberdade Religiosa uma sagrada e indispensável oportunidade para o cristianismo? Então, a imagem apresentada aos nossos olhos, como tantas vezes nos referimos, também pode se transformar num amoroso convite e numa paterna convocação, em especial, aos católicos e católicas do mundo inteiro, para se colocarem em caminhada na construção de novas possibilidades de ser e estar no mundo em pluralidades.
É, nesse sentido, que a exemplaridade do encontro do Babalawô com o Papa estremece a colina de um catolicismo historicamente racista e sustentado pelo desejo e pretensão de superioridade e exclusão do diferente.
Ora, se o Papa, autoridade suprema da Igreja, se abre corajosa e amorosamente ao caminho do diálogo inter-religioso com todas as tradições religiosas (e com todos os povos), qual é o católico/católica, incluindo os clérigos, que, fiel ao supremo mandamento do amor deixado por Jesus e aos ensinamentos do Papa (“Igreja em saída”), percorrerá o caminho inverso da separação, do ódio, da demonização do diferente e da intolerância?
Não posso deixar de fazer referência aos passos da Arquidiocese do Rio, na pessoa do cardeal Dom Orani João Tempesta, em direção à Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. São passos alinhados ao Concílio Vaticano II e ao Papa que falam de “uma Igreja em saída” e, por isso, aberta a um “caminhar junto” no horizonte desafiador da sinodalidade querida por Francisco.
No dia 15 de setembro do corrente ano, na Orla de Copacabana, seguindo a tradição, ocorrerá a 17° Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. De verdade, desejo que o presente escrito sirva de motivação, de modo muitíssimo especial, para a comunidade católica, mas não apenas. Diz a Declaração Nostra Arraste do Concílio Vaticano II: “A Igreja reprova toda e qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião”.
Nessa direção, indaga o Papa: “Como é possível que hoje muitas minorias religiosas sofram discriminação ou perseguição? Como permitimos que nesta sociedade altamente civilizada existam pessoas que são perseguidas simplesmente por professar publicamente sua fé? E sustenta ainda Francisco: “Isso não só é inaceitável, é desumano, e insano”.
Nos termos do Documento do Secretariado para os não-cristãos, é o Espírito Santo que abre”os caminhos do diálogo para superar as diferenças raciais, sociais e religiosas…”. E porta que Deus abre ninguém fecha!
Agora, no horizonte do axé, é Exu que abre todos os caminhos, inclusive os da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa – e por que não?
Termino, pois, este artigo, contemplando a foto em tela, motivo maior desta reflexão. Mirando o sorriso do Papa diante do Babalawô vejo o sonho sincero, corajoso e esperançoso de “uma Igreja em saída”. Contemplando, de outro lado, as mãos pretas do Babalawô diante do Papa enxergo as multidões dos povos de axé que ao invés de trazerem em suas mãos a navalha do ódio e da vingança, trazem sim propostas coletivas para a construção de um mundo novo.
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